Como são deliciosas as tuas carícias, minha irmã, minha esposa! Mais deliciosos que o vinho são teus amores, e o odor dos teus perfumes excede o de todos os aromas! Teus lábios, ó esposa, destilam o mel; há mel e leite sob a tua língua. O perfume de tuas vestes é como o perfume do Líbano. (...)
Eu sou para o meu amado o objecto de seus desejos. Vem, meu bem-amado, saiamos ao campo, passemos a noite nos pomares; pela manhã iremos às vinhas, para ver se a vinha lançou rebentos, se as suas flores se abrem, se as romãzeiras estão em flor. Ali te darei as minhas carícias. As mandrágoras exalam o seu perfume; temos à nossa porta frutos excelentes, novos e velhos que guardei para ti, meu bem-amado. (...)
- Ora, eu sou um muro, e meus seios são como torres; por isso sou aos seus olhos uma fonte de alegria.
Do Cântico dos Cânticos (שִׁיר הַשִּׁירִים )
Só no final do séc. I (e.c.) na assembleia rabínica de Yabné se declarou a natureza sagrada (ou canónica) do Cântico dos Cânticos. Isto diz alguma coisa sobre a natureza suspeita do texto, inclusive depois da sua entrada para o cânone bíblico (judaico e cristão). A tendência foi quase exclusivamente a interpretação alegórica em detrimento do sentido primeiro, literal ou natural. Na verdade o Cântico é antes de tudo um poema transbordante de erotismo e sensualidade,um encontro arrebatador entre um homem e uma mulher, entre dois amantes profundamente apaixonados e inebriados; como diz o próprio nome do livro, usando o superlativo hebraico, é o mais belo ou o maior dos Cânticos (de amor). Tendo em conta a longa e conturbada história deste belo texto, só muito recentemente se deu a devida importância ao verdadeiro sentido natural do texto. Este sentido leva-nos a redescobrir as sensações, aromas e visões que ressaltam da descrição dos corpos e da natureza. No fim é:
«epitalâmio, canto de admiração e de amor trocado por uma mulher e por um homem, sussurro de amantes (...) Só muito tarde se leu a noite e o desejo, o corpo nomeado, perseguido, suplicado, o jardim entreaberto, a prece atendida.»
( José Tolentino Mendonça, Cântico dos Cânticos, Cotovia, Lisboa 1999, ed. bilingue).