quarta-feira, 13 de agosto de 2008

"Herança judeo-cristã, mito ou realidade?"



Sempre que venho a Paris aproveito para fazer uma actualização teológica mais aprofundada, uma vez que a publicação e oferta editorial neste campo é incomparavelmente melhor e maior em França do que em Portugal. Não podendo comprar tudo o que gostaria, selecciono aquilo que é mais actual e pertinente do meu ponto de vista. Assim, comprei entre outras coisas, o nº. 34/2008 da revista Cités (revista de Filosofia, Política e História) dedicado às relações entre Cristianismo e Judaísmo. A reflexão sobre o tema é feita a partir dum texto polémico de Yeshayahou Leibowitz (YL) publicado em 1968 no quotidiano israelita "Ha-Aretz": Sur le prétendu «héritage judéo-chrétien commun». A justificação para o retomar do tema a partir deste texto de 1968 tem a ver com o facto de se tratar dum artigo altamente polémico e brutal; uma verdadeira provocação intelectual. E como dizem os franceses não se suscita um debate a partir dum texto "à l'eau de rose" e torna-se necessário acordar do sono dogmático em que por vezes repousa a reflexão teológica contemporânea. YL (1903-1994) foi uma personalidade tão eminente quanto controversa da sociedade israelita. Houve quem visse nele uma espécie de "Sócrates moderno" (não confundir com o nosso Primeiro que é mais modernaço do que moderno). Em 1993 obteve o prestigiado "Prémio Israel" que o Primeiro ministro da altura (I. Rabin) se recusou a entregar-lhe em razão das suas tomadas de posição sobre a intervenção do exército israelita nos Territórios palestinianos e no Líbano, chegando a qualificar os soldados das unidades de elite de «judeo-nazis». Mas o que nos interessa mais agora é a sua reflexão teológica sobre o tema em apreço. Na verdade, para YL a ideia duma herança comum entre Judeus e Cristãos não passa duma ilusão teológica perigosa. Na sua perspectiva, judaísmo e cristianismo são duas religiões que não têm nada em comum e que, portanto, não podem partilhar uma herança. A primeira é teocêntrica, a segunda é antropocêntrica. De resto o cristianismo poderia perfeitamente existir sem o judaísmo.
Aliás, ainda segundo a sua opinião, o cristianismo tem mais a ver com o paganismo do que com o judaísmo, sendo um produto do mundo grego no estádio terminal da sua degenerescência no helenismo oriental e do sincretismo politeísta que se propagou na mesma época nas margens do Mediterrâneo. Em suma, era o «sexto estádio», e último, da religião grega. Na sua própria expressão a "herança judeo-cristã" é absurda e não se parece senão a "um triângulo de quatro lados", ou ainda a "gelo quente". Comparando os símbolos supremos da fé de cada uma das religiões - o sacrifício de Isaac e a cruz- realça a diferença abissal entre as duas religiões: a judaica como teocêntrica, em que o fim do homem é o serviço de Deus. A cristã como antropocêntrica, em que Deus não é senão o instrumento apropriado à satisfação da necessidade de redenção do homem. E é por isso que a fé judaica se concretiza no seio da realidade histórica no conjunto de preceitos práticos (a Halakha) ou seja, a organização da vida humana segundo um programa de serviço quotidiano de Deus. A contrario, o princípio do programa de vida do cristianismo, desde as suas origens até aos nossos dias, não é senão a anulação desses mesmos preceitos práticos da Torah. Negando o "sentido simbólico-cristão da Torah" cita vários autores (desde os Padres da Igreja até Kant, Hegel, Goethe, Dostoievski,K. Barth e M. Buber) para corroborar as suas teses. Desvaloriza completamente as Declarações do Concílio Vaticano II sobre as religiões e o judaísmo e não reconhece nenhuma utilidade ou legitimidade ao diálogo judeo-cristão. Não concordando com as teses de YL, apenas acrescentaria que o diálogo entre as religiões é necessário, não no sentido teológico, em que existem diferenças inultrapassáveis, mas no sentido da cooperação e compreensão mútuas. O artigo de YL tem a virtude de não ceder ao política e teologicamente correctos e suscitar um debate sem subterfúgios ou equívocos. Para terminar e dado que neste número da revista vem também publicado um artigo inédito do Cardeal Lustiger (antigo arcebispo de Paris falecido há um ano - 5 de Agosto) a quem chamavam o Cardinal-juif, refiro apenas que este prelado de origem judia e que se converteu ao catolicismo aos catorze anos, foi um incansável paladino do diálogo judeo-cristão. Mesmo depois da sua conversão e eleição como cardeal nunca renegou as suas origens e antes da sua morte pediu que um seu familiar próximo recitasse o Kadish (oração judaica pelos defuntos) no Parvis de Notre-Dame e que o seu sobrinho mais novo depositasse aos pés da urna um pouco de terra vinda de Israel. Como explicou o seu familiar antes da recitação do Kadish, esta é a única oração judaica em aramaico, a língua que Jesus falava. Esteve ainda presente uma delegação do CRIF (Conseil Représentatif des Institutions juives de France) que depois assistiu à missa de corpo presente dentro da igreja. Um dos rabinos afirmou que não concordava com a sua conversão, mas que reconhecia os seus esforços no sentido do diálogo entre as religiões. Já outro (bastante importante) não esteve presente no seu funeral, desculpando-se com o atraso no trânsito. Se há mês em que o trânsito em Paris é mais fluido, é em Agosto. Mistérios. Ficam as pistas para uma reflexão mais aprofundada sobre o tema.
Imagem: M. Chagall, o sacrifício de Isaac.

6 comentários:

Artur Coelho disse...

O cristianismo com um mix das mitologias helenistas e orientais? realmente, uma ideia provocadora.

José A. Vaz disse...

provocadora, mas pouco credível, na minha opinião, claro. leia-se por exemplo a "carta a diogneto".

Artur Coelho disse...

sim, a relação entre o judaísmo/cristianismo/islamismo, pelo pouco que sei destes assuntos, sempre foi muito próxima parece haver uma continuidade, não só geográfica. quanto aos sincretismos, são sempre inevitáveis... somos criaturas das nossas épocas, influenciáveis pelos contextos culturais. no man is an island, certo?

Anawîm disse...

Olá, José...

Não conheço o pensamento de Yeshayahou Leibowitz, mas pelo que leio aqui, não me espanta muito o seu jeito de pensar tão próprio da cultura do seu povo.
Admiro profundamente a cultura hebraica, assim como a dos outros povos semitas... (desde que não caiam em extremismos) e é curioso notar como uma das suas características é esta mesma de considerar todas as outros povos como pagãos, considerando a sua fé como a única e verdadeira (onde é que eu já ouvi isto?...eheheh)
Bom... o que é certo, e nem é preciso ir muito longe, é que a cultura hebraica influenciou a cultura de todo o mundo, muitas das pessoas que nem têm crenças nenhumas "praticam" o descanso do sábado, sem saber a história que ele tem.
Mas, falando agora historicamente, temos dados arqueológicos em que podemos observar como, de maneira interessante, a fé judaica coexistiu lado a lado com a fé cristã, durante séculos... sinagogas ao lado de igrejas.
Diz uma coordenadora do museu de Israel, Yael Israeli: "Muitos dos objectos nas igrejas e sinagogas eram feitos pelo mesmo artesão. Era só dizer se queria uma cruz ou um candelabro."
A única principal diferença era essa, uma cruz para os cristãos... um candelabro para os judeus.

Também tenho que discordar com a afirmação tão forte de que o judaísmo é teocêntrico e o cristianismo antropocêntrico... porque isso depende tanto do modo como vemos Deus, ou as Leis que inventámos à volta dEle e que tantas vezes não têm nada a ver com Ele (eu até desconfio que Ele nem sabe o que são Leis)
Yeshuah colocou o homem "doente" no centro, num dia de Sábado, porque Deus não pode querer que andemos à volta dEle somente, sem olhar para quem está tão ao nosso lado e que precisa de mim!... Deus só nos quer inteiros, porque só somos inteiros com os outros, não sozinhos... inteiros, com Ele e Ele connosco...

Falando da herança comum...
É claro que temos uma herança comum, nem que seja a de sermos todos pessoas à procura de ser felizes da melhor maneira possível! eheh... Com esta imensa riqueza que é uma História comum, partilhada por todos, percorrida à procura do Deus que nos criou e sentimos que nos quer com Ele... cada um ao seu jeito.

É claro que é de uma enorme riqueza a tentativa de um diálogo judeo-cristão... assim como todos os diálogos com todas as culturas, com todos os que procuram o melhor desta busca de Deus, deem-Lhe o nome que Lhe derem...

E repito o que Yeshuah, um nazareno judeu, que ele não andou a anular a Lei com tudo o que dizia e fazia... ele potenciou-a ao seu máximo. E Deus confirmou a vida inteira deste homem, suscitando-o de novo (re-ssuscitando-o), colocando-lhe nas mãos a vida devolvida, confirmada (glorificada) por ELE.

Olha José... espero não me ter alongado de modo aborrecido, ehehehe... enfim... às vezes acho que há pessoas que perdem tempo em pensamentos demasiado teóricos, demasiado subjectivos, quando a vida é tão simples, e está aí pedir para ser vivida de modo pleno, sujando as mãos na terra!...

Gostei imenso deste desafio de comentar este post. Voltarei mais vezes. Um abraço...

(Ai... aproveita bem essa cidade belíssima de que eu gosto tanto!...)

José A. Vaz disse...

ARTUR, certo. contudo acho que os sincretismos são sempre de evitar porque levam a coisas muito difusas que ninguém sabe muito bem o que são nem aonde levam.

ANAWÎN, muito obrigado pelo comentário que revela serenidade e sabedoria. tenho este blog não tanto para dizer alguma coisa, mas sobretudo para trocar ideias e aprender com os outros. não foi nada aborrecido e eu também gosto de sujar as mãos na terra.
e sim, faço por aproveitar as surpresas de paris "jour et nuit".

Luiz Nascimento disse...

Interessantíssimo o pensamento de YL... Verdade, após diversos concílios a igreja cristã tornou-se um movimento pagão, sincrético e aberrante, muito distante do pensamento cristão "original"(século I). Na idade média com o movimento protestante(uns mais protestantes, outros mais reformistas), o movimento cristão ganhou força e igrejas surgiram. Destas muitas professam fé, amor e submissão ao Triuno Deus, de sorte que essas igrejas tem muito da adoração, reverência e temor a um único Deus, YHWH, com a diferença de reconhê-Lo coisa que os judeus não o fizeram quando da explicitação de Deus em Cristo Jesus.